REENCARNAÇÕES DO BAHIANO TONINHO

 Ao contar sobre suas encarnações, o "bahiano Toninho" antes esclarece que na linha dos "bahianos" trabalham os espíritos relacionados com todo o nordeste, e não necessariamente apenas os que nasceram na Bahia. São guias da "direita" mas estão muito próximos da esquerda dos exus e pombo giras, e nela transitam bastante. Toninho contou que sua última encarnação aconteceu em Salvador, na Bahia, na época da Lei do Ventre Livre. Isso significa que seus pais continuariam escravos mas ele seria livre. Mas como um escravo vai criar um filho livre? Seria criado com toda certeza por alguém branco ou não escravo.  Seus pais resolveram que ele seria criado por negros livres e assim que ele nasceu, secretamente levaram-no à porta de um terreiro de candomblé que operava na beira da praia, bateram na porta e desapareceram na escuridão. Então ele foi adotado pela jovem filha da Mãe de Santo do terreiro e passou toda a vida morando e trabalhando nesse terreiro. Nada de seu teve na vida, nem família, nem casa nem outro emprego. Cresceu no terreiro, e lá trabalhou, dormiu, bebeu, conheceu muita gente pobre e muita gente rica e muitas vezes defendeu o terreiro contra os desmandos dos alibãs, como eram chamados os policiais. E por essa existência tão desprovida, viveu bem e quando velho morreu e seu corpo foi pro mar, pra Yemanjá. É com esta existência que se identifica. Mas para melhor compreender sua história convém conhecer a encarnação anterior, na África. 



           Na encarnação africana, entre os séculos XV e XVI, no litoral da hoje Nigéria, sua tribo era muito primitiva como a maioria das tribos. Na tradição africana, os orixás não eram peculiares a cada indivíduo como no candomblé no Brasil, mas sim a cada Nação. Sendo assim, cada nação tinha seu orixá e entendia que deveria combater o orixá de outra tribo, mas isso é ignorância dos seres humanos. Quando foram trazidos para o Brasil como escravos e misturados nos porões dos navios negreiros, lutavam entre si devido aos ódios tribais, por isso morriam muitos na viagem, matavam-se uns aos outros. Então, consideraram melhor reunir os diversos orixás, para combater o orixá do escravizador. Deveriam unir-se contra o orixá opressor. E esse fato ocorreu também nas senzalas e nova maneira de viver surgiu entre os africanos escravos, reunindo e cultuando na mesma tribo todos os orixás. Dessa forma qualquer nação passou a cultuar todos os orixás e os ódios tribais desapareceu entre os negros escravos no Brasil.

        Nessa encarnação africana, Toninho se chamava Okelelê e sua tribo, à beira mar,  cultuava Yemanjá, orixá da fertilidade. O casamento era determinado pelo pai  da moça e esta não reclamava, pois afinal era o costume, gostassem ou não do noivo. Os relacionamentos entre não cônjuges ocorriam e eram tolerados, afinal a comunidade era pequena e necessitavam-se uns aos outros. O que não se tolerava era a esterilidade da mulher, devido ao culto a Yemanjá, mãe da fertilidade -- mulheres estéreis eram consideradas defeituosas e se isso ocorresse, a mulher estaria condenada à morte. Embora muito brutos, havia um resquício de piedade, pois se uma mulher tinha já dois filhos, parindo um terceiro o introduzia às ocultas na casa da estéril para que esta escapasse da morte, mas também esse recurso era vigiado e nem sempre dava certo.

     Uma moça que foi escolhida para ser esposa de Okelelê,  um homem tinha "feito mal a ela" e ficava falando disso pra todo mundo. Isso incomodou muito Okelelê, que resolveu fazer a sua justiça. Elaborou a sua magia para calar e punir o falador. Reuniu os artefatos simpáticos, escolheu a lua certa, e conjurou pelo ritual que conhecia. O resultado foi que o falador contraiu uma doença que lhe encheu a língua de feridas, impedindo-o de se expressar por palavras, e isso impediria também a possibilidade de o pobre desfazer a magia por não conseguir pronunciar as palavras mágicas necessárias.  Okelelê sempre pensava nisso quando fazia as suas magias, procurava sempre deixar a vítima sem possibilidade de reação. A magia poderia ser combatida pelo uso da imaginação, das rogativas, preces, fé, mas ninguém conhecia nem tinha forças pra usar desse recurso. A doença prosperou e por não poder mais comer, o homem morreu de fome. Okelelê não ficou arrependido. Isso não existia na concepção daquele povo.  "Se a magia deu certo, então Yemanjá aprovou”... por isso estava de bem com o orixá. Mas Okelelê não se limitou a essa justiça com as próprias mãos... contou uma outra que fez.... Foi assim: uma época viu-se fortemente atraído por uma moça da tribo e a queria ter pelo menos uma vez. Mas no seu caminho para ela existia outro homem. Ela se relacionou com esse outro e gostou dele. As chances de Okê diminuíram. Por fim ela engravidou desse homem... Okelelê sentiu que tinha perdido. Por causa da fertilidade, tanto ela quanto o homem estavam na graça com Yemanjá. Mas um mago despeitado e sem código de moral só faz mesmo o que não deve. Resolveu estragar essa felicidade, ou verificar seu próprio poder com Yemanjá. Descreveu sua maquinação mágica, a qual pediu que não se transcrevesse aqui, principalmente porque se alguém a reproduzir, dela será a primeira e maior vítima. Movido pelo despeito e ciúme, fez sua magia de prejuízos sem ter em conta as conseqüências de tais práticas. Não demorou muito, a moça sofreu um aborto. Na lógica da tribo, se não ter filhos era ruim, perder o filho era pior ainda, porque nesse caso não cuidaram direito direito do filho que Yemanjá lhe presenteou. E a sentença era a morte da mãe e do pai da criança. Também agora a magia havia dado certo, então pensou: "Yemanjá aprovou", não tem do que recriminar-se.

         Muitas outras magias boas e más ele ainda praticou, o tempo passou e um dia Okelelê morreu. Estava certo de que estaria no seio de Yemanjá, a mãe amada a que tanto lhe ajudara e a quem tanto servira. Entrou no mundo dos mortos na esperança de ser recebido em graças pela orixá e viu-se num lugar nas profundezas, escuro, cinzento, sombrio, feio, barulhento, repleto de miseráveis deitados pelos caminhos, sem ninguém alegre.  Em vez de Yemanjá, surgiu um ser terrível e trevoso que se tornou seu tormento. Era o ente que ele havia evocado e o amarrara em suas magias e que agora exigia obediência.  Okelelê se surpreendeu com a realidade porque achava que o êxito de suas magias era por causa de Yemanjá, e não de um espírito cruel. Não entendia que quando construía a dor para seu próximo, estava constrangendo um ser primitivo e o obrigando a sofrer também. E esses entes realizam a mesma cobrança quando são libertados da magia ou quando o mago desencarna. Vendo que o verdugo não lhe dava sossego, quis acertar com ele as contas e servi-lo agora em troca do que lhe ajudara quando encarnado. Mas o algoz queria apenas fazê-lo sofrer, torturá-lo, incomodar de todas as maneiras e principalmente não deixá-lo dormir. E Okelelê tinha muito sono porque perdia muita energia naquele ambiente. Não restava alternativa senão fugir dessa figura. Uma vez viu um rio muito largo de águas pretas e sujas. Pensou que se atravessasse aquele rio até outra margem, estaria livre do algóz. Lançou-se na água, e então foi atacado por chusmas de sanguessugas que lhe sugavam as energias. Nesse rio, alguns espíritos ficavam de tal forma extenuados pelos parasitas que simplesmente "morriam" novamente e ficavam inertes no fundo. Desse estado não poderiam mais sair por si mesmos e teriam de ser tirados de lá por outros espíritos que mandavam um raio de luz que limpava toda a água do local, afastava os parasitas e então o pobre era resgatado. Esse resgate era feito por pedidos de intercessão de espíritos ligados a tais pobres, por orações para eles de encarnados, pelo pedido de uma mãe ou espírito amigo. Não convinha que um espírito ligado por amizade fosse pessoalmente resgatar  o sofredor, pois poderia entrar em ressonância com o ambiente e com outros espíritos e ficar paralisado lá também. Esse trabalho é feito pelos Exus, os trancas ruas das almas, por determinação dos espíritos de luz. Caboclos não descem até lá, mas mandam os exus resgatarem. Os tranca ruas, e todo exu "encapado", desce às profundezas, envolvidos pela sua capa como disfarce e proteção. Vão apagando sua luz até atingirem o fundo. Lá acendem novamente sua luz um pouco para dar vida ao pobre, o despertam e trazem para cima. O sofredor que ficara décadas submerso em pesadelos desperta achando que tinha ficado poucos minutos, tal como num coma. E assim lutava Okelelê, sem poder dormir, constantemente vigiado pelo seu algoz. No entanto ele não sentia ódio por ninguém e tampouco carregava culpas das diatribes que perpetrara, uma vez que não havia essa consciência no campo da sua encarnação. E isso servia como antídoto à depressão ou "segunda morte". Queria dormir para apenas descansar um pouco e não para "morrer" ou anular-se. Sentia muita falta de energia, necessitava refazer energias e dormir é refazimento. Mas descansar era o que não lhe permitia seu castigador. Nas profundezas, os bandos, ou castelos, estavam constantemente em guerra. O combate era o tempo todo e a sêde de poder é insaciável nesse mundo. Lá não existe amizade, existem pactos, negócios.  Muitos espíritos chamavam Okelelê para se juntar e fazer ataques a outros, e também vinham espiritos que o obrigavam a entrar numa guerra. Vinham espíritos medonhos, cavalgando dragões monstruosos acompanhados de bichos alados que emitiam guinchos estridentes que cortavam os ouvidos. O grito agudo e cortante desses seres voadores tinha propósito de não deixar pensar. Não se podia conversar sob seus gritos. E isso também era uma maneira de "demonstrar poder", de fazer entender que ali só eles falam, só eles têm direito a voz. Nesses combates, Okelelê tinha de lutar contra o inimigo comum e ao mesmo tempo defender-se dos golpes do seu inimigo pessoal, seu torturador.

     As coisas se passavam assim, naquele mundo escuro sem lei. Então Okelelê encontrou naquele caos, alguns locais fortificados, com grandes portões, onde se via alguma ordem no seu interior. Eram os "pontos neutros", onde aportavam guardiões de várias falanges. Esses espíritos tinham comida, tinham bom tabaco, cachaça etc. e às vezes davam algum pedaço de carne aos que ficavam rodeando seus muros. Algumas hordas queriam invadir, e eram repelidas com violência. Alguns espíritos procuravam adentrar para juntar-se a eles. Okelelê foi ficando cada vez mais próximo do portão. Certa feita um exu de dentro do muro deu um pedaço de carne para um pobre de fora e veio um ser forte e tomou dele. Houve uma reprovação íntima de Okelelê. Outra vêz deram de novo um pedaço de carne a um pobre e veio um fortão e tomou. Então Okelelê partiu o pedaço que tinha e deu para o companheiro de sina, para procurar estabelecer solidariedade naquela miséria. Sem que ele soubesse, isso era observado pelos Exus guardiões. Alguns pobres mais fracos procuraram se agrupar perto da entrada, na esperança de entrar. Então alguém abriu o portão e deixou que alguns e dentre eles Okelelê, entrassem. Então surgiu o algóz de Okelelê dizendo que ele lhe pertencia e não era para entrar. O Guardião apenas respondeu "quem não toma conta dos seus, os perde" e expulsou o agressor. Fecharam o portão e recolheram os pobres, com ordens enérgicas, mas eram palavras de ordem e todos tinham um interesse comum. Recolheram e acorrentaram os recém chegados, porque estes ainda não eram de confiança e vinham de lugar sem lei e poderiam dar trabalho com indisciplina. 

Então começou a ressoar no local toques de tambores que vinham de longe, um chamado "da superfície". Não eram toques para Yemanjá, mas ele conhecia que aquele toque era para Ogun, o orixá da Lei, do combate, das demandas. Os cavaleiros e guerreiros misteriosos se organizavam para ir até  à origem do som dos tambores. Eram verdadeiros exércitos, bem organizados, que levavam os iniciantes com eles. Eles se dirigiam para o horizonte no sentido do som, e se alguém fosse sozinho se perdia nos horizontes, apenas o grupo tinha acesso aos "portais". Então um cavaleiro perguntou se ele queria ir com eles e assim Okelelê juntou-se aos Exus, um grande grupo organizado, o que lhe dava muito bem estar. Todos tinham um objetivo comum e protegiam-se uns aos outros. Sua sorte começara a mudar. Ao toque de Ogun, as correntes de alguns se abriram com que por magia, suavemente, deixando-os livres para o trabalho. A comitiva partiu no rumo do som dos tambores, subiu as montanhas, venceu os horizontes e chegou à superfície, em um terreiro na mata em terras brasileiras, onde um grupo de escravos fazia seu culto africano. Os atabaques estalavam nos couros. Os cavaleiros adentraram o círculo do terreiro somando-se aos outros que já lá estavam e com eles entrou Okelelê. Então um sacerdote, ou médium encarnado falou que tinha chegado junto com os exus um grupo bem primitivo, lá das profundezas, e ancestral. Eram densos e muito fedidos também.  Okelelê viu que falavam sobre eles e agora descobriu que cheiravam mal, pois traziam larvas grudadas em si. Perguntaram quem o tinha trazido, e o Exu que o convidou respondeu que ele estava sob sua responsabilidade e que vieram para trabalhar. Os Exus eram rigorosos, davam ordens rudemente, mas havia amizade e bom humor também. Ordenaram que ele se limpasse daquele fedor. Como? Pensou Okelelê... Vá se defumar pra dissolver essas sujeiras...Alegrou-se pelo tanto que progrediu naquele pouco tempo com os Exus. Foi convidado por eles, foi levado em trabalho na crosta pra contato com os encarnados, descobriu que fedia, descobriu que podia também limpar sua sujeira e que estava entre seres amigos. Então o chefe da turma perguntou se ele queria trabalhar junto com eles.  Okelelê apenas perguntou: "eu vou poder também dormir de vez em quando?" tal era o seu esgotamento, pois nada havia dormido até o momento. E o chefe respondeu: "Eu te prometo isto". Começou então sua vida de trabalho construtivo. O trabalho dos iniciantes era de limpeza, retirar as larvas, dissolvendo-as com sal, ou fogo, ou ervas, ou cal, ou pólvora, se tivesse. Estavam em terras do Brasil, no estado da Bahia, século XVII. Exercia agora sua magia em benefícios dos escravos, em proteção aos irmãos africanos cativos. Depois de muito tempo nesse trabalho, passou a ser o guia Exu do hoje "preto velho Vô Bizu", que na época nem era tão velho e tinha outro nome. Na realidade ficou sendo exu do sábio e conhecedor mandingueiro Vô Bizu. Operava as magias em conjunto com ele, e aprendia a ética e bondade do velho negro (vô Bizu desencarnou velho... com 45 anos...). Vô Bizu conta que Okelelê dava trabalho, gostava de bebida, e não titubeava muito em castigar duro os inimigos, demorava-se quando encorporado etc.. Okulelê era difícil de lidar mas por outro lado, sempre surgia com uma solução boa para situações dolorosas. Ele sempre tinha um caminho positivo para diminuir o total sofrimento, quando alguns espíritos diziam que deveriam se conformar com a dor etc., ele tinha uma idéia boa pra socorrer uma situação. 

O "Sinhô" de vô Bizú permitia que os escravos tocassem seus tambores e praticassem seu culto e até que tomassem alguma aguardente, mas às vezes abruptamente proibia as reuniões, pra castigá-los por alguma morte ou maluquice por terem bebido demais, por exemplo, e essa proibição doía na alma dos escravos, pior do se não permitisse tocar nem uma vez. 

Uma vez Vô Bizu fugiu e foi perseguido pelo próprio filho do sinhô junto com o capitão do mato. Então vô Bizu se irritou muito e resolveu dar uma reação definitiva. Convocou o espírito Okelelê e fizeram uma magia fatal.  Okelelê descreveu esse ritual. Então o sinhozinho acabou morrendo vitimado por mais de trinta picadas de cobras venenosas. O capitão do mato, que como todos era africano de tribo inimiga do fugido, sabia muito bem a razão desse fato e esclareceu ao Sinhô que aquilo era magia mesmo e que era melhor não prosseguir na captura do preto velho, pois coisa pior poderia acontecer. O Sinhô entendeu a mensagem e mandou parar a perseguição. Okelelê aprendeu muito com vô Bizu sobre moral, tolerância e espiritualidade. Aprendeu também que magia tem retorno, tem responsabilidade. Ficou sabendo até que mesmo o Sinhô não era tão mau e que muito do sofrimento era praticado pelos próprios cativos de outra nação que não conseguiam ver o outro cativo como irmão. Ele também já lembrava sua história e rapidamente progrediu. Ele cuidava de vô Bizu o tempo todo, e um dia, viu o velho negro de pé agradecendo a Zambi pela vida que vivera e agradecendo a ele Okelelê pelo seu trabalho como seu guia e agora ele olhava para ele com olhos de quem o enxergava claramente. Mas via também o corpo do velho deitado no catre.. Vô Bizú tinha morrido e estava consciente do outro lado, em gratidão pela encarnação difícil e proveitosa. Ele tinha aprendido muito, mas muito mesmo sendo guia do Vô Bizú, e este iria prepara-lo para encarnar, agora sem muitos grandes riscos de fracasso. 

       Não precisa muito esforço para compreender que agora Vô bizú será o guia de Okelelê reencarnado. Assim, em fins do século XVIII,  na época do "Ventre-Livre", um casal de escravos,  concebe uma criança. Resolvem que se chamaria Antonio, se fosse homem, mas não tinham a menor possibilidade de criá-lo. Esse casal de anjos, como Toninho fala deles, consultou amigos e alguém sugeriu que eles entregassem a criança para que alguém a criasse, fosse a Igreja ou alguma família branca. Mas o casal optou por entregá-lo aos cuidados de alguém da raça, e nesse caso só poderia ser mesmo um terreiro de candomblé. E assim foi feito. Nascido o menino, nominado de Antonio por eles, foi levado à noite na frente do terreiro de candomblé na beira da praia. Bateram na porta e sumiram correndo na escuridão da areia. Quem atendeu a porta foi uma moça de dezenove anos, chamada Catarina, filha da Mãe de Santo do terreiro. Essa velha mãe de santo logo identificou os sinais ancestrais que estavam muito claramente indicados nas suas mãos e braços, e já sabia que ele já havia sido destinado a viver ali no terreiro como trabalhador. Mas ela só contou isso para o Toninho depois que ele já tinha morrido e realizado sua missão, pois do contrário ele ia crescer demais no orgulho e estragar tudo.  A menina o adotou como filho e assim o educou. Essa moça se casou e teve uma filha, mas enviuvou logo. Toninho foi criado para o trabalho no terreiro, mas a irmã adotiva dele, uns três anos mais nova, foi criada de modo totalmente convencional, sem preparo intensivo para seguir como mãe de santo, para substituir a mãe catarina, quando esta morresse. Eram as mulheres que comandavam o candomble na Bahia, conforme a tradição africana. Era sempre a mãe. Dessa forma, Toninho teve de obedecer à sua mãe adotiva e mãe de santo, e depois que ela morreu, passou a obedecer à filha dela que mal fora preparada para ser mãe de santo.  Toninho queria muito ser criado de modo comum, mas isso não aconteceu nunca. Sempre foi dentro da disciplina e da mediunidade. Ele sabia que era sozinho no mundo, mas nunca quis seguir os descaminhos dos amigos de infância, igualmente sem ninguem na vida. Pois ele pelo menos tinha onde morar, mesmo que fosse no seu local de trabalho. Na sua mocidade aprendeu a capoeira e contou que criou graus de capoeira baseado nos Orixas, com faixas das suas cores e iniciação em cada faixa, relacionada aos atributos dos orixás. Por exemplo, para a faixa de Ogum, eles aprenderiam os movimentos conforme a impulsividade desse Orixá. No grau de Yemanjá, eles lutariam sobre os rochedos que saiam do mar, com movimentos das águas, no grau de Yansã, como se fosse ventania e rodomoinhos etc etc.  Cresceu e  ficou morando por lá, vivendo só do trabalho do terreiro. Não constituiu família e nem teve propriedades. No candomblé cobram-se consultas, mas ele atendia muita gente pobre que nao tinha como pagar. Essas pessoas pobres muitas vezes pediam para serem atendidas por ele fora do terreiro, alí na areia da praia, por pejo de dizer que não tinham como pagar e ainda usar o terreiro. Mas cobrava caro de gente rica que ia lá pra resolver suas inconfidências, mas tudo o que recebia não conseguia gastar para ele mesmo. Alguma coisa no terreiro demandava reparo ou algum pobre precisava de auxílio e lá se ia o dinheiro ganho. Cobrasse o que cobrasse, não conseguia usar para si. Mesmo assim ainda arranjava alguma namorada e teve poucas delas. Uma vez se apaixonou e chegou a pensar em mudar de vida e fazer família, mas a moça deu preferência a alguém mais estabilzado, ou pelo menos alguém que tivesse algum recurso. E em uma das muitas festas do terreiro surgiu por lá a moça e o seu noivo, a fazer ciúme para o pobre do Toninho. Isso até pode lembrar a situação semelhante ocorrida na sua encarnação na África na qual ele fez uma magia ruim. Mas desta vez Toninho nem pensou em vingança, nem em experimentar poder, ele só quis morrer. Doeu-lhe a situação e ele se abateu muito e se considerou inútil de estar na vida. Resolveu morrer. Pegou um barquinho bem ruim e foi pro mar pra se encontrar com a mãe Yemanjá. Coincidiu de nesse dia ocorrer uma grande ventania nessa região da Bahia que virou muitos barcos. Naquele barulho todo do mar acabando com seu barquinho ele se arrependeu e não quis mais morrer. Seu barquinho se demanchou na tormenta, mas ele se agarrou em um pedaço de madeira que boiava e o mar o jogou de volta à praia. Mal saiu do mar deparou-se com a mãe de santo à sua espera na praia; "já terminou?" ela perguntou. "Então vai trabalhar porque a fila tá grande e só tem você pra atender hoje." Quis tomar um banho antes, mas a mãe lhe disse que já tinha tomado um bom banho de sal grosso no mar e tava muito bem preparado pro trabalho. E lá ia Toninho a dar ânimo aos pobres, e atender aos pedidos dos ricos, mas ele mesmo sem ter onde cair morto. 

  E foi assim que um dia nos seu sessenta anos, caminhando pela praia, sentiu uma moleza, uma tonteira e se deitou na areia pra tomar fôlego. Se deitou muito perto da água e as ondas vinham e muito de mansinho, tocavam no seus pés e voltavam. Achou muito bom aquele carinho do mar, que tinha sua delicadeza com ele. Abandonou-se enlevado naquele ritmo do mar a lhe beijar os pés, quando alguém lhe estendia a mão para se levantar. Era um mendigo que havia atendido algumas vezes no terreiro e a quem sempre ajudava. Ergue-se fácilmente pela mão do pobre e este o foi levando para dentro do mar. Ele via a figura de Yemanjá cheia de luzes, subindo como se fosse uma onda. Preocupou-se em sair logo da água pois a onda crescia muito e estava para cobrí-los. Mas quando a onda cresceu muito e o cobriu surgiu outro cenário, com muita gente o recebendo e o felicitando. Logo percebeu que já estava no outro mundo, e que estava muito gostosa essa partida, essa passagem, ou essa morte. Muitos parabéns e congratulações, pela boa encarnação que tivera. Logo lhe vieram falar de trabalho, e que ele poderia integrar um movimento que já estava se organizando no mundo espiritual, chamado Umbanda. E que ele poderia trabalhar como bahiano, e um bom nome seria o dele mesmo "bahiano Toninho", nome de batismo na última encarnação, no terreiro de candomblé. Ficou feliz por ter sido aquele Toninho que nada teve na vida a não ser o trabalho de médium do terreiro de candomblé e mais nada. Agora tinha liberdade e saúde e riqueza e capacidade para trabalhar mais ainda. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário